"As Damas do Lago" surgiu da ideia de escrever um livro de contos curtinhos ambientados em Brasília. A intenção é que todos os contos tragam um pouco da cultura e do cotidiano brasiliense. Mas, é claro, esse é só mais um projeto que está parado. Apesar disso, "As Damas do Lago" traz consigo um gostinho brasiliense de prosa com lenda urbana. Arrisco dizer que é o melhor conto do livro (é o único que existe).
Todo mundo sabe sobre os constantes afogamentos no Lago Paranoá. É difícil determinar um único motivo. Alguns culpam as águas turvas, as raízes de árvores que se acumulam no fundo e agarram nos pés. Às vezes, dizem ser pelas apostas entre amigos sobre quem consegue nadar mais longe, desafiando as águas. Às vezes, são meros acidentes, alguém cai de um barco em movimento na parte mais profunda, ou se machuca ao tentar fazer uma manobra arriscada de lancha. Outros só podem culpar o excesso de álcool, as festas que saem de controle na beira do lago no meio da noite, quando não há visibilidade, nem ninguém por perto para ajudar. O fato é que muitas vidas se perdem nessas águas, o que é sempre uma tristeza. Mas há também aqueles que contam uma história diferente, sobre damas das águas que deslizam e se esgueiram. São difíceis de ver, mas estão sempre por perto quando a lua está cheia. Como elas chegaram aqui, ninguém pode explicar. Talvez vieram direto do Rio Paranoá, ficando presas com a construção da barragem e fazendo morada na Vila Amaury. Ou então, quem sabe, nasceram da espuma que se acumula nas bordas, presas em pedrinhas no Parque das Garças, e preenchidas de vida pela luz da lua. Mas elas estão ali, com certeza. Damas feitas de água doce, espuma e luar, que se escondem na cidade submersa e, às vezes, saem para procurar companhia.
Quando o lago está cheio e as águas agitadas, é a ocasião perfeita para brincar na superfície. Elas nadam, pulam e giram no ar. Suas caudas de couro, escuras como a pele de um bagre, brilham com as gotículas que se soltam e respingam para todos os lados. Quando seus grandes corpos caem de volta na água, o som alto ecoa por toda a orla, e as ondas que se formam viajam longe. De vez em quando, as mais ousadas se arriscam a nadar na superfície durante o dia. O fim de tarde é o ideal, pois a penumbra confunde os banhistas. Se alguém ver seus grandes olhos espiando pelas águas, com os longos cabelos se espalhando ao seu redor, ou vislumbrar uma ponta da sua cauda, a couraça escura em contraste com as águas, ainda é possível que haja uma confusão. “Aquilo é uma tartaruga?” alguns dizem “Não, olha como nada rápido, só pode ser uma cobra bem grande” e é o suficiente para que todos saiam do lago, e a sereia está a salvo novamente. Elas se sentem ofendidas quando são confundidas com capivaras, é claro. Apesar de ser bom para seu disfarce, elas são muito vaidosas. E como não haviam de ser? Metade moça, metade peixe. Cabelos longos e quase sempre escuros, o tom de pele que varia, assim como o matiz das caudas furta-cor quando vistas na luz. Elas refletem as mais diversas cores, com verdes, azuis e alaranjados se misturando a medida que a luz a ilumina. Mas no fim, todas as caudas são de um couro grosso e até um pouco gosmento, apenas com lampejos de cores que brincam de se misturar quando tocadas pelo sol. Para as ninfas de água doce, não faz sentido tem escamas. O couro é melhor para deslizar pelos fundos pedregosos e cheios de tocos de árvores, e ajuda a se misturar na escuridão do Lago Paranoá quando a noite cai e não há mais luz ou barco que alcance certos lugares escondidos por entre a mata. Pequenas guelras cortam as laterais de seus pescoços, e elas podem viver no fundo do lago para sempre, se assim preferirem.
Mas elas nunca querem ficar, elas gostam de sair para olhar as estrelas, ver os barcos e as festas a beira lago. Gostam de ver as moças de vestido dançando e os homens rindo em grupos. Elas prendem a respiração o quanto podem, passando de um quarto de hora, só para observar aqueles seres que elas tanto admiram. Se perguntam qual seria o gosto dos petiscos que eles beliscam, das bebidas que estão sempre tomando e que fazem espuma como o próprio lago. Qual seria o gosto deles? De todos eles. Elas não fazem por maldade, é claro, só são criaturas muito curiosas. Querem saber de tudo, toca-lós com suas mãozinhas cheias de membranas entre os dedos, morde-lós com seus dentinhos afiados como os de piranhas… elas não podem falar, nunca poderiam nos fazer perguntas. Mas elas podem cantar como as baleias. E, em toda noite de lua cheia, elas cantam. Quando brincam na superfície, o som parece apenas alguns estalos, seu click click de alegria agita a água e deixa a noite mais animada. São as risadas das ninfas, que borbulham pela noite como estalinhos de São João. Mas quando estão tristes e solitárias, seu canto é como um lamento, longo e profundo, praticamente irresistível para aqueles que as ouvem. Dizem que se alguém escutar esse som na noite, logo seus olhos também estarão vertendo água. Um choro profundo lavará sua alma, até não haver mais lágrimas para derramar. As sereias choram o tempo todo, mas suas lágrimas logo se misturam ao lago. O mínimo que podemos fazer é emprestar nossas lágrimas para elas, assim talvez elas possam sentir um alívio momentâneo. Mas se ainda assim, depois de doar todas as suas lágrimas, o pobre ouvinte ainda escutar suas lamúrias, então é tarde demais. A dama solitária escolheu seu companheiro da temporada. Antes que possa perceber, o pobre infeliz estará movendo seus pés em direção ao coração do Lago Paranoá. Lentamente, passo após passo, sem perceber que está ficando cada vez mais fundo. Não há dor nem medo, apesar de ser frio e escuro, principalmente com a água no pescoço. Mas é reconfortante ouvir aquele som tão doce e, ao mesmo tempo, tão triste. Talvez não seja uma má ideia se deixar afundar, embalado pela luz da lua cheia, o respingar das gotículas de lágrimas e o som do canto da sereia.