O primeiro texto (Arroz) se passa quando eu e meu avô estamos tomando café, minha tia e minha prima estão no texto também. Cemitério de Pinel: Andarilhos, se passa em um sanatório no qual estive internado.
ARROZ
Fued tateava a mesa em busca dos talheres com a delicadeza de Rubinstein tateando o
teclado do piano antes de executar o Intermezzo em lá maior de Brahms, mesmo
movimento com as mãos, mesmo olhar, mesma curvatura do pescoço.
(-“I don’t know. I can’t find any notes, you know?”)
Empurrando o pouco arroz com o indicador e o polegar até o garfo, levando lentamente
a boca, deixa cair alguns grãos no colo, a neta se irrita.
-Use a faca vô!
-Hein?
-Ah! Coisa triste gente surda...
O avô responde com uma discreta risada e continua a comer, chupando os grãos com a
boca para não deixá-los cair de novo.
-Assim vai se afogar.
-Hãn?
-Disse que tu vai se afogar chupando a comida!
O avô limpa a boca e pega o copo d'água, vagarosamente inclina-o sobre os lábios, dá
um suspiro refrescante daqueles de propaganda de refrigerante, então fala a neta.
-Sabe, tem vezes que fico sem comer arroz durante muito tempo.
-Com certo desdém a neta pergunta: – É mesmo? Por quê?
-Porque me incomodam menos.
Olha para mim sorrindo e diz: -Que dia e hoje? -Trinta.
-É quarta?
-Não, é quinta.
(- “I can’t. I don’t see the notes anymore, it’s important.”)
NOTICIÁRIO: "homem morre após ser atingido por rajadas de metralhadora"
Filha: -Ai! mas que horror o volume desta televisão!
-Sabia que és descendente dos Fenícios vô?
-Hãn?
- Descendente dos Fenícios!
- Pra ti ver, eu conheci um Felício, mas não lembro onde.
Cemitério de Pinel: Andarilhos.
- Tu não pareces esquizofrênico, disse Fabrício; “Ele parece”, se referindo ao rapaz que
lavava sua roupa no tanquinho do pátio, tinha óculos de fundo de garrafa, as lentes eram de
cor cinza, usava uma calça de moletom marrom, fazia calor, veio caminhando não sei de onde
até chegar aqui em Santana, até chegar aqui no Pinel. “Eles vem...”, Romualdo afirmou, agora
tremia pouco, tinha orelhas enormes, torcia-as com as mãos, pareciam de borracha.
A moça de Fortaleza era linda, disse que eu também não parecia esquizofrênico. “Vem correr
comigo Ernesto!”. Era uma mulher atraente, eu neguei com a cabeça e a mão nos bolsos. O
homem que era professor de Libras tinha medo de tudo, ouvi pelos corredores.
- Como se faz bom dia em Libras? Ele movimentou a mão direita na direção do queixo,
fechou a mão a abaixo da boca, logo abriu rapidamente e a posicionou para frente do seu peito
e falou “Bom”, encostou o mínimo, anelar e médio no dedão fazendo com que houvesse um
espaço na forma de ‘O’ e o indicador em riste, posicionou o mesmo na testa e disse “Dia”,
levantando a mão rapidamente apontando para a o teto. Pedi que repetisse, fez os mesmos
movimentos, rápidos, diferente da sua voz lenta e espaçada em dizer “Bom Dia”.
A moça de Fortaleza não correu pelo pátio no outro dia, tomou seu lugar o “Professor Bom
Dia”, que caminhava em linha reta, primeiro porque não havia outra opção devido ao espaço
do pátio, havia bancos de madeira, uma mesa de ping pong (nunca vi ninguém jogar nela) e só
um espaço vazio que dava para uma grade, era esse o espaço mais apropriado, seja para uma
corrida, ou uma caminhada. “Professor Bom Dia” caminhava de cabeça baixa, taciturno, com
medo não sei de quê, já seu Jorge tinha medo de dois negros, usava bigode, eu e Cláudio o
vimos arrumar sua sacola de roupas para ir embora “Vou embora.” Já perdi as contas de
quantas vezes dei meu garfo de plástico para ele terminar suas refeições, pois sempre o
quebrava. Sua mulher e filha (suponho que são) apareceram certo dia para dar banho nele, foi
no dia de visitas.
A mãe do “Fundos de Garrafa” foi vê-lo, tinha olhos azuis, o cabelo pintado de preto, me
pareceu ser de origem italiana, tiraram uma foto ao lado da estátua de Pinel com uma câmera
digital. “Não pode tirar fotos aqui” disse Alex, o mais sereno e simpático dos técnicos. - Leia
a Bíblia, deu um beijo em “Fundos de Garrafa” e foi embora.
Acabou a visita, os internos ficaram todos perto do bebedouro onde havia sofás, com uma
mesa cheia de revistas, jornais e, claro, a Bíblia. Todos em silêncio, sentados, “Fundos de
Garrafa” pegou uma pequena Bíblia de capa azul marinho, tive uma quando fiz catequese ou
crisma.
Abriu-a, “Sabia que os dependentes químicos são 10% mais inteligentes dos que não são?”
Hoje tenho uma Bíblia igual, está na minha prateleira, ainda não a abri, minto, abri e ali
encontrei um santinho, Santo Expedito, padroeiro dos militares, estudantes e dos viajantes, o
pai de Fabrício era militar, já havia falecido, ele dizia que tinha um tumor, não o pai, mas
Fabrício, na cabeça, “Fundos de Garrafa” era um viajante, como um eremita, veio
caminhando não sei de onde até chegar a Santana e no Pinel, “Professor Bom Dia” caminhava
sempre de cabeça baixa e em silêncio no pátio como um monge cartuxo, a moça de Fortaleza
corria, transparecia alegria, foi simpática ao me convidar para uma corrida. “Todos os
pensamentos verdadeiramente grandes são concebidos durante uma caminhada”. Nietzsche.
Robert Walser (escritor suíço) que o diga, foi encontrado morto na neve em uma de suas
incursões, nos arredores do sanatório de Herisau (Suíça) no dia de Natal, ouvia vozes, foi-lhe
diagnosticada uma esquizofrenia catatônica, entre suas obras está “Passeios com Robert
Walser”, Carl Seeling, escritor, editor, filantropo e admirador de sua obra o visitou durante 20
anos, será que Carl disse o mesmo que Fabrício e a moça de Fortaleza disseram a mim?
- Eles vem...