Escrevi esse texto durante a pandemia como uma tentativa frustrada de compreender o que se passava. Nele se reflete toda a confusão mental encarcerada em um apartamento. Gostaria que fosse convertido em áudios de whatsapp sem destinatário, mas a obra continua incompleta.
Estava em casa
e fui deixada aqui
sem nada
sem saber de nada
continuei com
minhas atividades
diárias
mas cadê
o computador
a leiteira
o cachorro
***
primeiro perdi o copo
não achava
por nada
nesse mundo
cadê
procura
vasculha
na estante mesa chão banheiro
sofá casa do cachorro
procura
nas escadas elevador porta
dos vizinhos
mas tudo bem
bebo direto
da boca
da torneira
ouvi na rádio
a palavra
resiliência
***
depois
desapareceram
o vaso
sanitário
não é
possível
sumir assim
sem deixar
rastros
o bicho tem
pernas
será necessário
evacuar
todo apartamento
e mesmo
assim
só encontro
vazios
e silêncios
***
no terceiro
dia
ou será
semana
ou mês
ano
década
não sei
o cachorro se foi
ou era gato
não lembro
não recordo
nem o nome
só vejo a ração
e o colchãozinho
no chão
***
quero contar
para algum
amigo
acontecimentos estranhos
que ocorrem
qualquer pessoa
pode ser
terapeuta
conhecer diagnósticos
remédios
e causas
(serei a única?)
mas não há
contatos no
celular está
vazio
esqueço
dos nomes
das pessoas
e coisas
então conto
os móveis
e objetos
ainda tenho 36.
***
no dia seguinte
ou será mês
ano
década
não há nada
então me deito
no centro
e tento
imaginar
o que foi
que passou
talvez sonhar
***
acordo
e tudo está
amontoado
tudo
reviro e
quebro um copo
remexo
nas memórias
emaranhadas
até as calcinhas
reapareceram
e do sangue
do corte
lambido
sinto o gosto
da história